Achamos tão claro e objetivo o artigo publicado na gazeta Folha de São Paulo, de hoje, do físico e professor emérito da Unicamp, Rogério Cezar de Cerqueira Leite, que resolvemos replicá-lo.
A cerveja: bebendo gato por lebre
O Brasil é o quarto maior produtor de cerveja, com pouco mais de 10 bilhões de litros por ano. A China é o maior de todos, com 35 bilhões, e os EUA são o segundo, com 24 bilhões. A Alemanha vem em terceiro, com uma produção apenas 5% maior que a brasileira.
Segundo norma autorregulatória da indústria cervejeira alemã, a cerveja é composta única e exclusivamente por apenas três elementos, cevada, lúpulo e água, tendo como interveniente um fermento.
Tradicionalmente, o termo malte designa única e precisamente a cevada germinada.
O malte pode substituir a cevada total ou parcialmente. A malandragem começa aqui. Com frequência, lê-se em rótulos de cervejas a expressão "cereais maltados" ou simplesmente "malte", dissimulando assim a natureza do ingrediente principal na composição da bebida.
Com a aplicação desse termo a qualquer cereal germinado, a indústria cervejeira pode optar por cereais mais baratos, ocultando essa opção.
O poder da indústria cervejeira no Brasil (lobby, tráfico de influência etc.) deve ser imenso. Basta lembrar que convenceram as autoridades (in)competentes nacionais de que não estavam violentando normas que regulam a formação de monopólios ao agregar Brahma e Antártica - o que constituiria então cerca de 70% do consumo nacional - com o argumento de que só assim poderiam concorrer no mercado globalizado. Mas depois foram gostosamente absorvidas por uma multinacional do ramo, certamente uma forma sutil de realizar a concorrência prometida. E não foi tomada nenhuma providência.
Aliás, sempre que aparecia no cenário uma empresa nascente que, pela qualidade, pudesse despertar no brasileiro uma eventual discriminação quanto ao sabor, era ela acuada por todos os meios possíveis e finalmente absorvida, e sua produção, reduzida ao mesmo nível da mediocridade dos produtos das duas gigantes.
Aparentemente, o receio era o de que a população cervejeira, ao ser exposta a diferentes e mais sofisticados exemplos, desenvolvesse algum bom gosto e, consequentemente, passasse a demandar cerveja de qualidade.
A cerveja brasileira (com pequenas e honrosas exceções) é como pão de forma: mata a sede, mas não satisfaz o paladar exigente.
Para esclarecer a questão da má qualidade da cerveja brasileira, vamos fazer alguns cálculos.
A produção nacional de cevada tem ficado nos últimos anos entre 200 mil e 250 mil toneladas, das quais entre 60% e 80% são aproveitados pela indústria cervejeira. Essa produção agrícola tem sido suplementada por importação de quantidade equivalente. Em média, portanto, cerca de 400 mil toneladas de cevada são consumidas na indústria da cerveja no Brasil, presumindo-se que quase toda a importação tenha essa finalidade.
O índice de conversão entre a cevada e o álcool é, em média, de 220 litros por tonelada. Como as cervejas brasileiras têm um teor de álcool de 5%, podemos concluir que seria necessário que houvesse pelo menos seis vezes a quantidade de cevada hoje disponível para a indústria nacional da cerveja.
Portanto, a menos que um fenômeno semelhante àquele do "milagre da multiplicação dos pães" esteja ocorrendo, o álcool proveniente da cevada na cerveja brasileira representa cerca de 15% do total.
Há pouco mais de duas décadas foi publicado um relatório de uma tradicional instituição científica do Estado de São Paulo segundo o qual análises de cervejas brasileiras mostravam que um pouco menos que 50% do conteúdo da bebida era proveniente de milho (obviamente sem considerar a água contida).
Como o índice de conversão de grão em álcool para o milho é 80% maior que para a cevada, podemos considerar que a conclusão do relatório em questão atua como álibi, pois satisfaria normas vigentes.
Isso também explica a preferência dos produtores de cerveja pelo milho, pois os preços da tonelada dos dois cereais são aproximadamente os mesmos, apesar de consideráveis oscilações.
Esses números permitem, todavia, concluir que o milho (e outros eventuais cereais que não a cevada) constitui, em peso, quase três quartos da matéria-prima da cerveja brasileira, revelando sua vocação para homogeneização e crescente vulgaridade.
Outro determinante da baixa qualidade da cerveja brasileira é a adição de aditivos químicos para a conservação. O mal não está só nessa condição, mas na sua necessidade. O lúpulo em cervejas de qualidade, sejam "lagers", sejam "ales", é o componente responsável pela conservação -além, obviamente, de suas qualidades de paladar.
Depreende-se daí que os concentrados de lúpulo usados na cerveja brasileira são de baixa qualidade. O que é inexplicável e de lamentar, entretanto, é que as autoridades brasileiras, tão zelosas para com alimentos corriqueiros, sejam tão omissas quando se trata da bebida nacional mais popular e de maior consumo e permitam que o cidadão brasileiro beba gato por lebre.
3 comentários:
ASSERÇÃO CORRETA, RAZÃO ERRADA.
Com todo o respeito que um professor emérito merece, certamente foi a Física que o projetou, porque sua Química cervejeira está um pouco confusa.
A tal "norma autorregulatória" (ela regula a si própria?!?) alemã é a conhecida Lei da Pureza (Reinheitgebots). Além da água e do lúpulo ela cita o malte de cevada no seu texto original de 1516. Órgãos reguladores incluiram a levedura e o malte de trigo ao longo dos anos, reparando erros históricos causado por interesses econômicos e atualização científica.
Com pura cevada não malteada não é possível fazer cerveja. Ela não será convertida em álcool pelo fermento pois as enzimas que transformam o amido em maltose só existem nos grãos malteados.
Depois, a conta que ele faz não possui embasamento científico, é uma regra de três primária.
Os "adjuntos cervejeiros" que, pela legislação brasileira, são citados nos rótulos como "cereais não maltados" podem ser quirera de arroz e grits de milho, e não devem ultrapassar 35% do peso de cereal na cerveja comum. Para aumentar a capacidade de transformação em álcool pode ser colocado um percentual de high-maltose ou de açúcar de cana. Claro que concordo que isso nivela por baixo, mas isso tem uma nomenclatura clara: cerveja comum. Compra quem quer.
Os "extratos de lúpulo de baixa qualidade" que ele se refere são os mesmos utilizados por quase toda a cerveja feita no mundo. Não há na União Européia ou nos EUA indústria que vulgarize o lúpulo. Não há lúpulo na América do Sul (exceto uma pequena produção da variedade Cascade en El Bolsón, sul da Argentina.
Sua assertiva em relação à qualidade média das cervejas brasileiras é incostestável, bem como os favorecimentos imorais inerentes ao monopólio.
Continuemos com nossas cervejas especiais. Esse mundo das negociatas me dá sede de qualidade!
Abraços
BURGOMESTRE
E ANTES QUE ME ESQUEÇA:
QUE A FONTE NUUUNCA SEQUE EM 2010!
BOAS CERVEJAS!
BURGO
Nobríssimo burgomestre Sady!
Sempre oportunos e agregadores os teus comentários.
Como vês, replicamos o texto na íntegra, não nos fixando a questões técnicas, mas impulsionados pelo cerne da mensagem. Todavia, os teus esclarecimentos enobrecem a mesma, sem desviar o rumo à mesma conclusão: "Continuemos com nossas cervejas...".
Desejo ao amigo, e à nossa queridíssima Mari, uma passagem de ano fenomenal, com muitos cheiros e temperos!
2010 boas cervejas!
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